terça-feira, 11 de agosto de 2009

A liberdade na ponta do lápis

O simples rabiscar em uma folha de papel ajuda na concentração, espanta fobias e ajuda até na hora de estudar

Carol Scolforo

Bastam alguns traços para criar uma casa, duas curvas para formar o símbolo do amor, alguns pauzinhos para botar qualquer ser humano no papel. Ou no muro. Ou no chão. Desenhar nos dá liberdade para irmos para onde bem entendermos. Às vezes, um desenho é capaz de nos transportar até para um passado remoto. Afinal, foram os traços feitos nas paredes das cavernas que transmitiram a nós, homo sapiens, o modo de vida daquela época. Um instinto que ainda hoje toma conta de todos – principalmente na infância.

Que criança não adora fazer sua arte nas paredes de casa? Geralmente, mamães e papais nem gostam tanto, mas os rabiscos coloridos, com certeza, traduzem a realidade dos pimpolhos. Depois dessa fase, aprendemos que desenhando letras passamos mensagens. Mas há ainda quem diga que uma imagem vale mais que mil palavras.

O bom de tudo isso é que os resultados dos traços no papel podem surpreender e, de quebra, melhorar a vida de muita gente. Aliás, rabiscar é tão terapêutico que a francesa Claire Fäy lançou o caderno de atividades com vários passatempos para adultos. Em vez de fazer intrigas no escritório, Claire sugere descontar no caderno o tédio, as ansiedades e frustrações. “É uma válvula de escape para funcionários indignados”, diz ela. Sucesso Sem efeitos colaterais ou contra-indicações do pessoal do RH, o livrinho é sucesso em vários países europeus – permaneceu um ano nas listas de best-sellers franceses, garantiu sua posição entre os dez livros mais vendidos naquele país em 2007, e foi traduzido em dez línguas.

Para gente um pouco menos estressada – como as crianças –, desenhar envolve criatividade, como resumiu, no século passado, o professor de artes Viktor Lowenfeld. “ É por meio da atividade criadora que a criança desenvolve sua própria liberdade e iniciativa, e reconhece as diferenças individuais”, disse ele, cheio de experiências no campo.

Já o pesquisador Georges-Henri Luquet diz que o ato de desenhar força a criança a observar o mundo que a rodeia. “ Isso a obriga a vasculhar dentro de si modelos, modificando-os na medida em que evolui sua concepção de desenho”. Tudo bem, desenhar não é algo tão racional, ou medido em benefícios. Mas se essas razões não forem suficientes, há ainda a do escritor italiano Domenico de Masi: torne seu ócio realmente mais criativo. Entendeu, ou quer que eu desenhe?

Hobby virou emprego

Ter olhos abertos para a singularidade da vida é algo que mora nas entrelinhas de um caderno de desenhos. E sensibilidade se exercita até sem ver as cores - como Gabriel Medeiros, um cara com sorriso de covinha, faz desde pequeno. Descobriu o daltonismo pequeno, mas sempre pediu lápis de cor de presente. “Nunca tive carrinho, quando era criança. Gostava de desenhar, mesmo, e ganhava lápis e cadernos até no Natal”, ri.

Das cores da caixinha, amarelo é sua preferida, já que é a única que distingue bem. Mas em preto e branco, ou com tons psicodélicos, ele leva seu caderno para todos os momentos. Já desenhou no carro, na feira, na fila do banco e na inspiradora Pedra da Cebola.

Uma vez, passou um dia inteiro debruçado no papel. E como todo estudante que gosta de desenhar, já teve cadernos apreendidos em diversas aulas. Aprendeu, é claro, a lição. “Desenho só nos intervalos das aulas”, diz ele, com um sorriso de apaixonado por lápis e papel. Entrou para a faculdade de moda por gostar de desenhar estampas, mas quando se viu pressionado por criações que saíssem do papel, travou. E resolveu mudar de curso, três meses depois: preferiu ser fotógrafo. Hoje, ele desenha sobre as fotos que faz, e com isso, o hobby rendeu grana extra. Já fez folder, agenda e capa de jornal institucional. “Comecei a estilizar meu traço quando mudei de curso, e aí encontrei meu trabalho como queria”, comenta. E como nutrir a inspiração para dar química ao lápis e papel?

Para Gabrel, como o moço atende mais bem-humorado, a inspiração vem dos toy arts, da música instrumental, do stop motion (técnica que põe movimento em desenhos) e do adorado Tim Burton (o diretor dos fantasmagóricos “Edward Mãos de Tesoura” e “Noiva Cadáver”). O resultado são os traços únicos e poéticos de um estudante de 22 anos, que já ganharam quase 4 mil visualizações no YouTube. Quer uma pontinha? Acesse aí: www.flickr.com/mundobrel; www.mundobrel.blogspot.com ; www.youtube.com/gaabrel.

Para adultos:

Não sabe nem por onde começar? Solte o lápis, sem obrigações estéticas. O importante é criar algo novo, sem se prender a críticas ou esperar elogios.

Desenhe para você, para descobrir de verdade quais são suas cores. Está com raiva, medo, frustrado? Desconte no caderno o tédio, as ansiedades e frustrações. O desenho pode dar forma a suas emoções.

O assunto da próxima reunião é desinteressante? Aqueles desenhos aleatórios que saem do papel enquanto ouvimos, ao contrário do muitos pensam, ajudam a nos concentrar. E se o objetivo for se concentrar ainda mais, desenhe mandalas. Quem garante é a psicóloga Monalisa Dibo que estuda o assunto há anos.

Para crianças: Dê a seu filho canetas, papéis, tintas, de acordo com a idade dele. Não é recomendável livros de colorir, pois as figuras e objetos delimitados restringem a criatividade. Dê a ele um avental de plástico e cubra as áreas próximas. Isso o deixará menos inibido e receoso de fazer bagunça - além de deixar a mamãe feliz com a limpeza.

Ensine seu filho a ser cuidadoso e responsável com o trabalho. Dê uma opinião honesta, significativa e construtiva sobre a qualidade do trabalho. Transmita a ideia de que os trabalhos do seu filho têm valor.

Reserve um espaço na casa para colar os trabalhos dele, e guarde os antigos em um catálogo, para dar espaço a novos desenhos.

Encoraje seu filho a falar dos desenhos que ele fez. Assim você aprenderá sobre o momento que ele está vivendo, e sobre seus sentimentos. Evite criar uma dependência de sua presença ou de suas sugestões nesse momento.

Fonte: Livro Como desenvolver a inteligência do seu filho, Ed. Seleções Reader‘s Digest

Desenhar ajuda nos estudos

Adicione a efervescência dos adolescentes a uma aula impregnada de informações de tempos remotos. O resultado? Alunos dispersos na aula de História. Mas basta assistir a uma aula do professor Márcio Vaccari, 35, para viajar no traço e conseguir imaginar como era a vida em outros tempos. É assim que ele prende a atenção de seus alunos, colocando seu hobby no quadro enquanto conta os detalhes da era medievais. “O desenho é um estímulo para eles apreenderem na mente as imagens originais da História.

Se isso atrai a atenção dos alunos, melhor ainda. Para mim, é apenas um estimulante para direcioná-los ao livro”, diz Márcio, um cara simples, que não assina nem os desenhos que faz para os amigos. “A arte é coletiva, é livre. Uso para me expressar”, simplifica. E ele tem talento. É impressionante, começa a desenhar de trás para a frente. “Culpa” da irmã, artista plástica. “Desenho desde criança, porque ela sempre deixou o material acessível, nunca me proibiu de usar”, ri.

Há dois anos, resolveu pintar, fora do papel. Não faz arte concreta, nem abstrata. Mas põe cor em cenas da literatura. Gosta mesmo é de desenhar gente. “Quando estou parado, distraído ou até no telefone, desenho gente em movimento. Contraditório, não?”

Desenhar ajuda a ganhar (ou perder) uma vaga

Uma gama de profissões exigem um bom traço para engrenar. Mas, antes de conseguir um emprego, ou mesmo passar numa prova teórica de trânsito, muita gente pode ser mal interpretado por um desenho. Nos testes de seleção mais modernos, os desenhos nem são tão usados mais, porém, podem revelar como você se projeta no mundo.

Ou seja, se desenhar uma pessoa sem chão, pode estar transmitindo ao avaliador que você não está firme em seu território, ou não sabe muito bem o que quer. O Google tem mais um monte desses macetes, que revelam alguns truques para ser aprovado na seleção. “Por isso mesmo, muitas empresas de seleção pararam de usá-lo, embora isso não altere muito o desenho da pessoa, pois na hora da prova, a coisa muda”, ri a analista de RH da Selecta, Sueli Martins.

De acordo com ela, um traço muito fora do comum pode mesmo atrapalhar a aprovação para a vaga tão sonhada. “É uma avaliação muito subjetiva, por isso é mais usada em clínica. Mesmo assim, ele pode desclassificar alguém, sim. Pode parecer confuso, mas para quem avalia é bem claro”

Desenhar espanta fobias

Sem compromisso estético ou formal, também é possível desenhar e se livrar de fobias e outros problemas emocionais tão cinzas quanto esse. Isso, graças à arteterapia, um tratamento que ultimamente anda sendo bastante reconhecido por médicos - em breve deve até entrar na grade de um curso de medicina do Estado.

Parece uma boa desculpa para um hobby, mas está bem longe de ser. “A arteterapia trabalha com a livre expressão, o que proporciona transformação e autocura porque dá vazão ao seu conteúdo, à criatividade”, diz Glícia Manso, arteterapeuta e presidente da Associação de Arterapia do Espírito Santo. E acrescenta: “Essa terapia cura no sentido de tomar posse do que você é, minimizando as dificuldades e conhecendo-as, realmente”, acrescenta. É como se fosse uma outra linguagem das emoções.

O terapeuta orienta a trabalhar bastante com as mãos, com o corpo e com a música. “É preciso ofertar várias linguagens da arte para o paciente se identificar”, diz Glícia. Geralmente, a terapia tem até duas sessões por semana, de uma hora cada. Os resultados, inclusive, são muito bons. “Às vezes, a pessoa consegue expressar algo na arte que verbalmente não conseguiria”, ensina ela. Depois da arte pronta, o arteterapeuta chega a conclusões com o paciente. “Temos medo de sermos criticados ao libertar traços no papel. Por isso, o desenho não pode ter nenhum efeito estético”, observa Glícia.

Tudo tem conteúdo simbólico, e é preciso colocar para fora. Se for difícil, a música pode ajudar. A maioria das artes que os pacientes preferem é o desenho no papel. “Essa atividade é estruturadora. Já o barro é mais intimista, e quando o paciente tem medo da argila, oferecemos o lápis, que dá muita segurança.”


Desenhar melhora a concentração

E lá está você, numa reunião, em frente à equipe toda, riscando o caderno, de onde saem super heróis, casinhas, flores e tudo mais que a sua imaginação mandar. Ou então acontece durante uma conversa longa ao telefone: uma enxurrada criativa toma conta do lápis no papel, e você solta uma porção de estrelinhas, coraçõezinhos, carinhas de coelho...

A psicóloga Monalisa Dibo, que pesquisa o assunto há alguns anos, garante que maioria das pessoas faz círculos em espirais. Ou então setinhas. No primeiro caso, uma das interpretações dá conta de uma tentativa de encontrar a si mesmo. Já as setas indicariam a busca de caminhos, alternativas.

E aquelas pessoas que rabiscam interrogações? Segundo a especialista podem estar querendo as respostas para suas dúvidas, enquanto aquelas que desenham casinhas buscam proteção. “Claro que nem tudo pode ser levado tão ao pé da letra, pois depende do momento que cada um está vivendo, do dia, e de uma série de coisas”, avalia ela. Mas que existe essa relação, ela não tem dúvida.

E para quem critica o desenho alheio na reunião de trabalho, justificando que seja falta de atenção, os cientistas dão um recado: pode ser exatamente o contrário. Jackie Andrade, em seu livro What does doodling do? (2009, sem tradução para português ainda), diz que esboçar um desenho por aparente distração ou de alheamento, não é uma perda de tempo. “É uma estratégia para ajudar a manter a atenção. Na verdade, parece ser a forma que algumas pessoas desenvolveram para contrariar o efeito de uma atividade monótona, ou, para se focarem de forma intensa em algo”.

E se o desenho for uma mandala, melhor. A psicóloga Monalisa Dibo comprovou cientificamente que mandalas favorecem ainda mais a concentração. Dividindo adolescentes em duas turmas, pediu a uma delas que desenhasse uma mandala por 40 minutos, e a outra, simplesmente, que ficasse sem desenhar. No fim da atividade, ela sentiu nitidamente: a turma que desenhou mandala teve uma melhora impressionante de concentração. “A aula deles rendeu mais, eles captaram melhor as informações e aprenderam muito mais“, explicou a psicóloga, acrescentando que a própria turma percebeu que estava mais concentrada. Ela não decidiu estudar o assunto por acaso.

Na Alemanha, os estudantes repetem essa atividade antes das aulas há muitos anos. “Das crianças menores às mais velhas, todas mantêm seus cadernos de desenho. Com isso, têm mais atenção nos estudos, tanto na sala de aula como ou em casa”

Desenhar solta os monstros e amarra as ideias

Desenhos são janelas que permitem ver como anda o interior de cada um. “Conseguimos ver a subjetividade e até perceber se há conflitos ali”, observa a psicóloga junguiana Mariana Taliba Chalfon.

Mas é importante dizer que um desenho é uma ferramenta, não uma análise isolada. Por isso, não vale sair por aí avaliando mal crianças que desenham monstros, por exemplo. Aliás, se monstros saírem delas e forem para o papel, ótimo. “À medida que criamos uma imagem, ela expressa um conflito que fica mais fácil de ser visualizado. Mesmo que não se estabeleça um diálogo racional entre a pessoa e a imagem, há uma catarse, um sentimento fica concretizado”, explica Mariana, mestranda em Psicologia Clínica.

Isso fica ainda mais claro quando os sentimentos estão indefinidos dentro da gente. Por isso, corra para pegar lápis e papel: você pode dissolver ali mesmo emoções como a angústia. “É como se você desse forma a um sentimento”, avalia Mariana.

Para as crianças, por exemplo, um desenho pode transmitir informações interessantes sobre o momento que ela vive, seu temperamento, suas carências e suas paixões. O livro “Como interpretar os desenhos das crianças”, da pedagoga Nicole Bedard, ajuda a compreender melhor o tema. Entre as considerações da pedagoga, estão a relação entre as idades e suas representações no papel: “Entre 2 e 3 anos de idade, a criança ainda não faz desenhos com significado representativo. Já entre os 3 e 5 anos de idade, ela já tenta desenhar de acordo com a sua realidade, e para elas, as imagens tem todo um sentido.

Mande a tristeza embora

Bom humor é indispensável para Vanessa Priscilla Amorim de Carvalho, 23, exprimir no papel suas emoções. No entanto, ironicamente, é nas crises existenciais que saem os melhores desenhos. Curvas sinuosas preenchem, com detalhes as folhas em branco, e assim esgotam horas tristes ou angustiadas.

É uma terapia que acabou virando profissão também. O traço levou tempo para alcançar a maturidade, diz Vanessa. “Aos 10 ou 12 anos comecei a rabiscar. Aos 14, comecei a observar mais a anatomia do corpo humano, e comecei a desenhar com grafite 6B”, conta, íntima dos materiais que mais gosta. “Comecei como um ócio criativo mesmo. Mas já passei até oito horas em cima de um papel. Parece um transe, quando começo a desenhar. Só paro se tiver algum compromisso, mas esqueço de comer, de ir ao banheiro, esqueço do mundo”. Segredo para começar a se arriscar sem medo no caderno de desenhos? Observar bem. “No início, não desenhava mão, e nem pé. Mas passei a olhar muitas fotos e assim, consegui“

Fontes: Glícia Manso arterapeuta e presidente da Associação de Arterapia do Espírito Santo. Monalisa Dibo psicóloga. Sueli Martins psicóloga analista de RH da Selecta. www.desenhosparacolorir.org Caderno de Rabiscos para Adultos Entediados no Trabalho. Claire Fay, editora Intrinseca, 2008. (R$ 11,00, em média).

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